Blog

O criador de cabras, a nossa soberba e os muitos tons da justiça

17/10/2014 23:57

Constituição e Poder

O criador de cabras, a nossa soberba e os muitos tons da justiça

Por 

        Nenhum aspecto ou atividade humana revela-se mais difícil de desempenhar do que a capacidade ou o poder de julgar nossos semelhantes. Obviamente, quando falo em julgamento de outros seres humanos, não me refiro apenas ao julgamento de uma conduta com base no direito posto, o que é atividade própria de um magistrado. Penso em qualquer situação em que, cotidianamente, todos nós estamos a julgar pessoas, e mesmo aquelas situações em que julgamos nossas próprias condutas.

        Se enfrentamos esse debate com honestidade intelectual, temos que admitir que julgar outros semelhantes será sempre — para quem quer que tenha essa responsabilidade - uma das mais difíceis atividades das que são atribuídas a esses frágeis animais racionais que têm a sina de vagar sobre a Terra.

        Em primeiro lugar, a nossa capacidade humana de julgar é extraordinariamente iludida pela impossibilidade, quase sempre incontornável, de romper com nossos preconceitos. De uma tal maldição tivemos a censura e o testemunho do próprio Cristo (Mateus 7: 3-5): “3 Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão e não se dá conta da viga que está em seu próprio olho? 4 Como você pode dizer ao seu irmão: 'Deixe-me tirar o cisco do seu olho', quando há uma viga no seu? 5 Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão”.

        Infelizmente, passados mais de dois mil anos da peregrinação do Filho do Homem pela Terra, não parecemos ter evoluído muito em nossos preconceitos. De fato, alcançado o Século XXI, quando pensávamos que a internet iria nos libertar com a sua incrível capacidade de difundir informações, entretanto, a rede mundial apenas parece ter deixado as pessoas mais à vontade com seus próprios preconceitos.

        Mas, voltemos aos sábios antigos.

        Platão iria dedicar sua principal obra e diálogo, A República, à discussão não apenas da essência da justiça, mas também à discussão da construção de uma sociedade idealmente justa. Não é coincidência, por outro lado, que também na República o grande pensador grego apresente, no livro VII (514a-517c), sua mais famosa narrativa,  a conhecida “Alegoria da Caverna”,  demonstrando que estamos todos sempre acorrentados aos nossos mais profundos preconceitos, sempre predispostos a confundir sombras com realidade. Como se vê, desde o início a luta pela justiça esteve ligada à luta contra os nossos preconceitos.

        Aristóteles também dedicou boa parte de suas preocupações filosóficas à questão da justiça, mas, com os pés fincados no chão, preferiu defini-la não a partir de um sistema de idealidade formal como quisera Platão, mas enxergando a sua existência na justa adequação dos comportamentos humanos às leis impostas  pela Cidade-Estado (cito): “é melhor ser governado por leis que por excelentes governantes, pois as leis não estão sujeitas às paixões, ao passo que os homens, por muito excelentes que sejam, podem incorrer nelas" (Política, livro III, 15, 1286 a 15). Em outras palavras, certo de que  tanto os homens quanto os seus governantes estão frequentemente sujeitos às paixões mundanas, Aristóteles não acreditava que a verdadeira justiça pudesse derivar da excelência de julgamentos de grandes homens, por mais iluminados que fossem. Diversamente, segundo Aristóteles, a justiça estaria em decidir, ou conduzir nossas condutas, sempre em conformidade com as leis do Estado.

        René Descartes, por sua vez, ironizava o fato de ninguém se queixar de sua própria capacidade de julgar. Como bem interpreta o pai da modernidade científica, é de fato intrigante como as pessoas sempre se queixam de tudo o mais que lhe tenha sido dado por Deus, mas estão sempre satisfeitas com a sua cota de bom senso e justiça.

        E, de fato, se é certo que as pessoas, não importando a sua condição pessoal ou classe social, dificilmente estão satisfeitas com as qualidades e os bens com que nasceram, é mesmo de se admirar, como Descartes, que precisamente naquilo que mais nos falta, isto é, nossa capacidade de julgar (bom senso), estejamos, contudo, nisso tão satisfeitos. Não obstante, conclusivamente, não existe aspecto da vida humana em que as pessoas se revelem tão vaidosas, tão irredutíveis, ou preconceituosas, como na sua suposta capacidade de julgar a si próprio ou a seus semelhantes. Nem o fato de sermos escancaradamente parciais em nossos julgamentos nos repõe alguma humildade nesse particular. Pelo contrário, quanto mais preconceituosos, mais nos tornamos convictos de que nossos julgamentos são perfeitamente justos e corretos, ao ponto de não aceitarmos qualquer outra perspectiva, ou reparo.

        Entretanto, se não fosse por outra razão, deveríamos ter a humildade de reconhecer que, em conflitos normativos, especialmente em colisão de princípios (posições normativas não definitivas), nem sempre é possível afirmar que o problema (seja de direito, ou moral) tenha apenas uma única solução correta. Muito menos deveríamos ser vaidosos de que sejamos, por melhor que seja a consideração que tenhamos sobre nossa própria inteligência e capacidade, portadores da única resposta possível em situações de conflitos normativos.

        Na verdade, quanto mais convictos de uma ideia ou de uma premissa de decisão,  adverte-nos Gadamer, mais deveríamos nos precatar contra nossos (pre)conceitos.

        Como colaboração a um pensamento de prudência e tolerância, reproduzo abaixo, em todos os seus termos, uma pequena história contada pelo excelente pensador e jurista alemão Bernd Rüthers, no seu manual de Teoria do Direito, em que o autor busca, de forma absolutamente didática, demonstrar a seus alunos como nem sempre um problema normativo pode apresentar apenas uma reposta correta. (Esclareço que apenas alterei o nome dos personagens e alguns poucos detalhes da história para torná-la — penso eu — mais compreensível ao público brasileiro. Por dever de honestidade intelectual repito que, não obstante a tradução livre, exceção àqueles poucos detalhes, tudo o mais é do autor[1]):

        Era uma vez três irmãos: André, Barnabé e Carlos, o caçula. André e Barnabé eram trabalhadores da terra e artesãos, sendo que Carlos, que era uma criança pura e ingênua, acabou não aprendendo nenhum ofício. Para ajudar o seu irmão mais novo a iniciar uma criação de cabras, André doou-lhe 5 cabras do seu rebanho de 30; Barnabé, por sua vez, doou-lhe uma cabra das 3de que era proprietário.

Com o passar dos tempos, Carlos, para a surpresa de todos, revelou-se um ótimo criador, mas, infelizmente, depois de 8 anos,  morre inesperadamente, sem ter feito testamento, mas deixando uma malhada de 132 cabras. Seus únicos parentes eram seus irmãos André e Barnabé.

        À época da morte do caçula,  André tinha um rebanho de 50 cabras; e Barnabé, 10 cabras.  

Diante da inexistência de testamento e como àquela altura não existiam nem Código Civil nem leis sucessórias que pudessem orientar uma decisão sobre o rebanho deixado por Carlos, os irmãos sobreviventes, André e Barnabé, reuniram-se para discutir como deveriam dividir as cabras deixadas por Carlos. 

        (Como narra o autor desse maravilhoso exemplo, na ausência de normas definitivas sobre a matéria, quando mais eles refletiam e deliberavam, mais indecisos ficavam diante da diversidade de soluções possíveis para o caso. Essas  diversas possibilidades emergiam tanto das discussões dos irmãos, quanto surgiam dos conselhos dados por amigos.)

Abaixo eu listo as 7 soluções sugeridas por B. Rüthers:

        Variante (1) -  A primeira solução que ocorreu aos irmãos  foi a de que ambos ficariam exatamente com a metade das 132 cabras legadas por Carlos, cabendo a cada um, portanto, 66 animais.

        Variante (2) -  Depois de refletirem um pouco mais, contudo, surgiu uma outra solução. Segundo essa variante, primeiramente cada irmão sobrevivente teria direito à devolução para o seu patrimônio do número de cabras que doou a Carlos quando ele começou sua criação. Portanto,  seriam devolvidas  5 cabras para André, e 1 cabra para Barnabé. Feito isso, as restantes 126 cabras (132 - 6) seriam divididas igualmente para ambos (63 cabras).

        Assim, André ficaria com 68 cabras (5 + 63), e a Barnabé seriam legadas 64 cabras (1 + 63).

        Variante (3) -  Barnabé apresentou uma outra proposta: A divisão entre os irmãos, segundo seu modo de ver, deveria considerar a “taxa de sacrifício” que teria sido imposta a cada um, André e Barnabé, à época do início do rebanho de Carlos.

No caso,  Barnabé teria feito um maior sacrifício, já que doou à época um terço (1/3)  do seu rebanho. De fato, das 3 cabras que tinha Barnabé doou  para Carlos 1 animal (1/3); por sua vez, André teve uma “cota de sacrifício” menor quando da constituição  do rebanho de Carlos, pois,  no caso, doou apenas um sexto (1/6) do seu rebanho, já que,  ao início, teria colaborado dando 5 cabras a Carlos das 30 cabras que tinha época (portanto, 5 de 30,  ou 1/6). Assim, Barnabé teria uma cota de sacrifício duas vezes maior do que o sacrifício que teria sido imposto a André, quando da constituição do rebanho de Carlos. De fato, como se sabe, um terço, cota de Barnabé,  é igual a duas vezes o um sexto, cota de André (1/3 =  2/6, ou 1/3 : 1/6 = 2).

         Assim, com base na taxa de sacrifício para iniciar o rebanho de Carlos, Barnabé teria direito a 2 quotas do rebanho de Carlos, e André teria direito a 1 cota apenas. Portanto, dividindo o rebanho legado em 3 cotas, Barnabé teria direito a 88 cabras (2 cotas de 3). André teria direito a 44 cabras, correspondendo a 1 cota de 3 da divisão do rebanho de 132 animais.

        Variante (4) -  André achou essa última proposta pouco justa. Considerando que ele e Barnabé não chegavam a um acordo, propôs buscarem o conselho de um amigo  comum, conhecido por sua sabedoria.  Esse amigo propôs, então, uma solução intermediária.

        Em primeiro lugar, utilizariam a taxa de sacrifício de cada um dos irmãos, mas aplicando-a diretamente em consideração ao momento presente, não em consideração ao momento em que o rebanho de Carlos foi iniciado. Assim, Barnabé teria, graças a sua “cota de sacrifício” de um terço (1/3) para a constituição do rebanho do irmão falecido, o direito a 44 cabras, o que corresponde a exatamente a um terço (1/3) do rebanho legado de 132 animais. André, inicialmente, teria direito 22 cabras, que corresponde exatamente a um sexto (1/6), que foi a sua “taxa de sacrifício”, considerando-se hoje o rebanho legado de 132 cabras.

        O restante do rebanho, no caso, 66 cabras (132 -  44 - 22), seria dividido igualmente pelo irmãos sobreviventes, resultando 33 cabras para cada um. Assim, ao final, Barnabé teria direito a 77 cabras (44 + 33); e André teria direito a 55 cabras (22 + 33). 

        Variante (5) – André achou essa última proposta ainda injusta e propôs, dividir o rebanho legado considerando como critério, pura e simplesmente, o “capital de saída” (Ausgangskapital), isto é, considerando o “capital inicial” com que cada um dos irmãos teria colaborado no início da criação do rebanho de Carlos.

        Assim, considerado o “capital de saída”, ter-se-ia uma relação de 5 a 1  em favor de André, pois ele teria doado, como capital de saída,  5 cabras  contra apenas 1 cabra doada por Barnabé à época da constituição do rebanho de Carlos. Assim, teríamos que dividir o rebanho em 6 cotas, cabendo 5 a André e 1 cota a Barnabé.

        Assim, André teria das 132 cabras de Carlos o direito a 110 cabras; e Barnabé teria direito a apenas 22 cabras (5 cotas de André  para 1 de Barnabé).

        Variante (6) – Barnabé fez então uma contraproposta. Eles fariam uma mistura  de critérios, dividindo o rebanho em duas partes.

 Inicialmente, em relação à primeira metade do rebanho (66 cabras), utilizariam parâmetros  utilizados comumente pelo  direito sucessório (Erbrecht) em outros casos; depois, para a outra metade, eles utilizariam ou o critério da “cota de sacrifício”, ou o critério do “capital inicial”.

Assim, valendo-se  do ponto de vista do direito sucessório comparado (Erbrecht), dividiriam a primeira metade de 66 cabras em duas partes iguais, cabendo a cada um dos irmãos, 33 cabras.

        Depois, eles poderiam usar para outra metade a “cota de sacrifício”, ou o critério do “capital inicial”. Agora, como se vê, dois são os  resultados possíveis, dependendo do critério que utilizem para a segunda metade do rebanho de Carlos.

        6. 1. Se usassem a “cota de sacrifício”, como vimos, Barnabé, que teve uma cota de sacrifício, duas vezes maior do que a de André, teria direito, em relação à segunda metade, a uma quota de 2/3, o que corresponde a 44 cabras, que somadas às 33 iniciais, dariam a Barnabé o total de  77 cabras. André, por sua vez,  ficaria com as 33 iniciais, mais 22, da segunda metade, que corresponde à sua “cota de sacrifício” (1/3), o que lhe consolidaria o número total de 55 cabras.

        6. 2. Contudo, caso optassem, em relação à segunda metade, pelo critério do “capital inicial”, a situação de cada um ficaria a seguinte: André teria direito às 33 cabras da primeira metade (direito sucessório) mais 5 cotas das 66 cabras restantes (pois como capital inicial, ele doou 5 das 6 cabras que iniciaram o rebanho de Carlos), ou seja, da segunda metade, teria direito ao número de 55 cabras, totalizando  um rebanho de 88. Barnabé, por sua vez, teria direito às 33 cabras da primeira metade, mais direito a 1 cota do capital inicial (já que das 6 cabras inicial do rebanho de Carlos, ele doou uma), contabilizando 11 cabras. No total ele teria direito a 44 cabras (11 + 33).

        Bernd Rüthers sugere ainda uma Variante (7).

        Segundo essa variante, os irmãos consultariam um Juiz conhecido de ambos. Ele sugere, então,  que os irmãos considerem inicialmente o número de cabras que teriam caso não tivesse doado seus animais para que Carlos iniciasse o seu rebanho.

        Considerado esse critério, assim ficariam as coisas: André, como vimos, conseguiu multiplicar por dois as 25 cabras que lhe restou, depois de doar a Carlos 5 animais das 30 cabras que tinha inicialmente. Com efeito, quando Carlos morreu, das 25 cabras  de seu rebanho, André tinha um rebanho de 50 cabras. Portanto, caso não tivesse doado as suas 5 cabras a Carlos, com as 30 cabras iniciais, é de se esperar que ele tivesse agora 60 cabras, já que o seu trabalho conseguiu dobrar o rebanho. Sendo assim, considerado esse critério, era justo que, inicialmente, ele recebesse 10 cabras do rebanho legado.

        Já Barnabé conseguiu multiplicar por 5 o seu rebanho. Das 2 cabras que lhe restaram, depois de doar um cabra para o seu irmão Carlos, ao final, ele tinha 10 cabras. Assim, se ele tivesse 3 cabras, é de se esperar que  agora ele tivesse 15 animais, sendo justo que ele recuperasse 5 cabras do rebanho doado.

        Por fim, subtraídas as 10 cabras que seriam legadas a André e as 5 que seriam legadas a Barnabé, o rebanho de Carlos ficaria agora com o número de 117 cabras.

O juiz propôs, então, dividir 116 cabras entre os irmãos, dando 58 para cada um. A última cabra seria sacrificada num almoço de confraternização entre as partes. Assim, André ficaria com 68 cabras (10 + 58) e Barnabé ficaria com 63 cabras (5 + 58).

        Segundo Rüthers, ao concluir a história, a sua experiência de apresentar e discutir essas propostas de solução com seus alunos acabou demonstrando que a maioria que se formava em favor de uma variante, numa turma, com o passar dos tempos, era alterada profundamente em favor de uma outra variante. Ele concluiria, então, que o conceito ou ideia de justiça sempre foi muito diferente, a depender do grupo ou de quem decida e, mais impressionante ainda, modifica-se com o passar dos anos[2].


[1] Bernd Rüthers. Rechtstheorie. München: Beck, 1999, p. 200-202. O autor preferiu nomear os irmãos de A, B e C. Resolvi modificar os nomes, porque, depois de algum momento, como verão, poderá conformar alguma confusão para o leitor brasileiro ante uma sobreposição de letras e números.

[2] Bernd Rüthers. Rechtstheorie. München: Beck, 1999, p. 202.

 é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.

Revista Consultor Jurídico, 16 de outubro de 2014, 21h55

 

*******************************************************

Cerca de 30% dos empregos serão substituídos por softwares ou robôs até 2025

07/10/2014 19:22

Máquinas darão a tônica de uma nova revolução industrial. Aparentemente, contexto não difere do cenário já vivido pela humanidade nos séculos anteriores

 IDG News Service

     Caso você seja uma daquelas pessoas que acha que o mercado de trabalho está difícil nos dias de hoje, espere até ver como será em 2025. As profecias apontam para um cenário quase de ficção científica.

Softwares, robôs, drones e outras tecnologias deverão substituir um terço da mão de obra humana em pouco mais uma década. Acreditando ou não, isso tem tudo a ver com sua vida. 

    “Um dia, veículos aéreos não tripulados serão nossos olhos e ouvidos”, projetou Peter Sondergaard, diretor de pesquisas do Gartner. Para ele, dentro de cinco anos, esses aparelhos voadores se tornarão padrão em muitas indústrias, como agricultura, óleo e gás e segurança. 

    O especialista diz que esse é apenas um pequeno exemplo de como as tecnologias emergentes ocuparão espaços muito além do mundo tradicional de TI. Máquinas inteligentes chegam como um ferramental que substituirão uma enorme variedade de funções, braçais ou intelectuais.

    Além disso, softwares com capacidades cognitivas ganharão terreno em outras áreas, incluindo serviços financeiros, diagnósticos médicos e toda outra sorte de trabalhos. Com isso, o conhecimento será automatizado, vislumbra Sondergaard.  

    “Acreditamos que um em cada três postos de trabalho será convertido em funções exercidas por software, robôs ou máquinas inteligentes até 2025”, ratifica o especialista, pontuando que essas tecnologias executarão as tarefas de maneira mais rápida e certeira que a mãos humanas.

    Lawrence Strohmaier, CIO da Nuverra Environmental Solutions, observa que essas previsões são bastante similares com o que já ocorreu em outras eras de avanço tecnológicos. Resta saber se a máxima de Charles Darwin seguirá valendo nesses próximos turbulentos anos e o mais apto sobreviverá.

A arte de materializar o pensamento

02/10/2014 20:41

Filosofia clínica
A arte de materializar o pensamento
O artesão pensa em uma asa de anjo
por Lúcio Packter

Imagem: Shutterstock

        O artesão pensa em uma asa de anjo. O anjo é barroco, mas sua expressão é contemporânea. Então se aproxima do bloco de madeira, empunha seu formão, aperta as tarraxas da mesa, puxa um lampadário para perto. Com a outra mão ele segura um grosso toco de lápis; rabisca indistintamente sobre o madeiramento do bloco. O artesão, entre um risco e outro, imagina quanto de seu pensamento se materializará em sua arte. Há questões oportunas nas relações entre o que é pensado e o que é materializado daquilo que é pensado. Clarice Lispector escreveu que: "O homem parecia ter desapontadamente perdido o sentido do que queria anotar. E hesitava, mordia a ponta do lápis como um lavrador embaraçado por ter que transformar o crescimento do trigo em algarismos. De novo revirou o lápis, duvidava e de novo duvidava, com um respeito inesperado pela palavra escrita. Parecia- -lhe que aquilo que lançasse no papel ficaria definitivo, ele não teve o desplante de rabiscar a primeira palavra. Tinha a impressão defensiva de que, mal escrevesse a primeira, e seria tarde demais. Tão desleal era a potência da mais simples palavra sobre o mais vasto dos pensamentos. Na realidade o pensamento daquele homem era apenas vasto, o que não o tornava muito utilizável. No entanto parece que ele sentia uma curiosa repulsa em concretizá- lo, e até um pouco ofendido como se lhe fizessem proposta dúbia".

        Verifique sua historicidade de vida. Quanto do que você imaginou, pensou, refletiu, sonhou se materializou? O que você imaginava ser, estar, acompanhar, vivenciar se efetivou de fato? Eis uma primeira aproximação de mensuração (por aproximação e não por exatidão) dos elementos conceituais que se tornaram materiais, palpáveis, corpóreos.

         Temos muitas questões. Por exemplo, nem sempre o que é pensado, sentido, percepcionado encontra correspondente no mundo corpóreo, sensorial. Em casos assim, precisamos pesquisar se a pessoa desiste, se aceita algo que se aproxime do que pensou, se ergue outra construção no lugar da construção pensada. Dostoiévski ilustrou o assunto da seguinte maneira: "É sabido que grupos completos de pensamento atravessam instantaneamente as nossas cabeças, na forma de certos sentimentos, sem tradução para a linguagem humana, menos ainda para uma linguagem literária... Porque muitos dos nossos sentimentos, quando traduzidos numa linguagem simples, parecem completamente sem sentido. Essa é a razão pela qual eles nunca chegam a entrar no mundo, no entanto, todos os têm".

        Materializar o pensamento é um aspecto que pode ser importante em nossas vidas. Pensar em uma bela casa de campo, em um lugar para visitar no fim de semana e tornar isso concreto é uma forma de estar no mundo. Mas até onde podemos chegar com isso? Qual o limite? Podemos olhar a lua no céu e dizer: "Ei, lua, pare bem aí!" E ela não se moverá mais no firmamento?

    Algumas pessoas dão por conclusivo e bom o próprio pensar. Não precisam e não querem ir além disso para qualquer outra coisa. 

        O pensamento, em si mesmo, se basta. Para muitos dos que funcionam desta forma, a materialização do pensamento pode acarretar tristeza e decepção. Buscam viver somente o conceito, alimentam-se disso, não apreciam o tijolo e o cimento, mas a ideia do tijolo e do cimento.

Imagem: Shutterstock

        Ocorre, em diversos casos, o inverso: a concretude alimenta, nutre o pensamento, e oferece tanto ao pensamento que este pouco tem a fazer.

        Entre outros motivos, isso pode acontecer pelas confusões que o pensamento, e a palavra que expressa o pensamento, o mundo encontram nos diálogos. Vamos a um exemplo em Merleau-Ponty, de sua obra (muito bonita!) Fenomenologia da percepção: "A palavra não é o signo do pensamento, se compreendermos como tal um fenômeno que anuncia outro, como o fumo anuncia o fogo". A palavra e o pensamento só admitiriam essa relação exterior se fossem dados tematicamente; na realidade, uma está envolvida no outro, o sentido está preso na palavra, e a palavra é a existência exterior do sentido. O que confere força, intensidade, concretude a um pensamento a ponto de torná-lo algo tão denso quanto uma pedra, um cerâmico do mediterrâneo, um trem com suas tantas toneladas sobre os trilhos?

        Será que cada vez que mudamos uma ideia de lugar fazemos algo assim?

        Epicteto, em seu Manual, diz: "O que perturba os homens não são as coisas, e sim as opiniões que eles têm em relação às coisas. A morte, por exemplo, nada tem de terrível, senão ela teria parecido assim a Sócrates. Mas a opinião que reina em relação à morte, eis o que a faz parecer terrível aos nossos olhos. Por conseguinte, quando estivermos embaraçados, perturbados ou penalizados, não o atribuamos a outrem, mas a nós próprios, isto é, às nossas próprias opiniões". Ou seja... Será que cada vez que mudamos uma ideia de lugar fazemos algo assim?!

        Na realidade temos feito isso a vida inteira, muitas vezes sem sabermos.

        É evidente que bem antes disso eu lhe falarei sobre limites, problemas, responsabilidades, correlações. É assim que talvez você compreenda que sua garagem fica melhor sem uma Mercedes-Benz, que ela foi feita para outras coisas, que o caminho é outro, que uma Mercedes-Benz seria um problema. Materializar o que se pensa é parte importante da questão (tomando o número de pessoas como parâmetro), do problema. Consequências, responsabilidades, decorrências são muito importantes.

https://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/97/a-arte-de-materializar-o-pensamento-o-artesao-pensa-326299-1.asp

Água: o que há em comum entre Sikri, Ilha de Páscoa e São Paulo

26/09/2014 15:34

por Paulo Bento Maffei de Souza e Paulo Vodianitskaia*

Sistema Cantareira atinge volume zero em 2014 mes de junho20140515 0003 406x270 Água: o que há em comum entre Sikri, Ilha de Páscoa e São Paulo

Sistema de bombas da reserva técnica do Sistema Cantareira, em São Paulo. Foto: Vagner Campos/A2 FOTOGRAFIA

 

Crises não são novidade. Depois que ocorrem, após algum tempo para análise, surgem várias explicações sobre suas causas e sobre o que poderia ter sido feito para evitá-las. Em muitos casos, os estudos de crises passadas criam conhecimento que poderia prevenir futuras. Porém, em certos casos, evitar crises nos demandaria esforços maiores do que gostaríamos empreender e portanto nos entregamos à tendência coletiva de achar que desta vez será diferente. Mas será? Antes de falar da estiagem que aflige São Paulo, vejamos alguns episódios passados sobre crises hídricas, que nos transmitem valiosas lições.



No século XVI o poderoso Akbar, rei dos Moghols, ergue uma monumental cidadela em Sikri, a 30 quilômetros de Agra, na Índia, e a denominou a “Cidade da Vitória”. Isto porque pouco antes um profeta sufi previra a Akbar o nascimento de três filhos nesse lugar, o que realmente aconteceu nos anos seguintes. Algo, no entanto, o profeta não previu, ou não revelou. Quinze anos após transferir para lá o seu séquito de cinco mil mulheres – das quais trezentas esposas -, mil soldados e seus cavalos, Akbar teve que abandonar aqueles “jardins do paraíso”, deixando a fortaleza aos poucos herdeiros do profeta, por um único motivo: escassez de água.

 

Na mesma época, as tribos da Ilha de Páscoa estavam em seu auge, com uma população de 30 mil habitantes e uma dedicação incondicional a talhar e erguer centenas de gigantescas estátuas de pedra, os moais. Presume-se que essas rochas eram transportadas pela ilha com o uso de troncos de árvores. A competição em torno dos moais acabou por extinguir as florestas gerando, dentre outros problemas, uma severa escassez de água doce. Esse fato, aliado à erosão causada por práticas inapropriadas de agricultura, levou a população à guerra civil e ao canibalismo. Em menos de duzentos anos a população foi reduzida a apenas cem sobreviventes, vivendo em estado de miséria.

 

Um ano antes do nascimento de Akbar, era fundada no Brasil a Vila de São Paulo da Piratininga. Em região aquinhoada com vastos recursos hídricos, a cidade de São Paulo sobreviveu a Sikri por quinhentos anos. Em 1872 houve o primeiro censo demográfico no Brasil, revelando que dos seus 10 milhões de habitantes, 31 mil viviam na cidade de São Paulo, em franca expansão até ultrapassar a marca de 11 milhões de habitantes em 2011. Em 2014, a cidade enfrenta a pior crise hídrica de sua história.

 

Essa crise não se limita à cidade de São Paulo, atinge uma ampla região. Dezenove municípios paulistas efetuam racionamento de água, dos quais doze ficam na região de Campinas. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) estima que 3 mil postos de trabalho já tenham sido fechados em decorrência da falta d’água. Agricultores já irrigam em alguns casos somente 30% do que antes da crise hídrica. A Secretaria da Agricultura estima em caráter preliminar que a estiagem já tenha reduzido as safras de café em 25% e de cana e algodão em 10%.

 

De três destinos bem diferentes, há um ponto comum entre Sikri, Ilha de Páscoa, e São Paulo: em certo momento de suas histórias, enfrentaram crises ambientais sem precedentes, das quais Sikri e a Ilha de Páscoa saíram perdedoras. Que lições podemos tirar dessa crise? Como manter São Paulo em sua trajetória de êxito e desenvolvimento? A resposta começa por qualificativos que podem parecer óbvios, mas não são nada triviais: que o sucesso seja construído em bases duráveis, ou seja, que o desenvolvimento seja sustentável.

 

Hoje há amplo consenso sobre as condições necessárias e suficientes para que a sociedade se sustente indefinidamente. A organização de origem sueca The Natural Step** propôs essas condições em 1989 e diversos atores públicos e privados vêm buscando adequar-se a elas em todo o mundo, com diversas intensidades de resultados positivos, dependendo de seu estágio de evolução no tema. Essas condições estabelecem que uma sociedade sustentável não polui sistematicamente, não destrói sistematicamente o seu ambiente e não impede as pessoas de satisfazer suas necessidades fundamentais.

 

Parece simples e óbvio. E de fato é. Se examinarmos situações de colapso ambiental tais como Sikri e a Ilha de Páscoa, veremos que ocorreram como resultado da violação sistemática de uma ou de várias dessas condições. E o que tem isso a ver com São Paulo?

 

Consideremos alguns poucos exemplos de violações que a nossa sociedade ocasiona, e que tem provável relação com a dramática crise que atravessamos. Nossos corpos hídricos são sistematicamente poluídos, diminuindo a disponibilidade de água limpa. As florestas remanescentes no Brasil vem sendo degradadas de forma crescente, gerando variações da umidade trazida ao Sudeste e Sul do Brasil pelas nuvens que vêm da Amazônia. A nível local, solos menos permeáveis não absorvem água, com consequente aumento da demanda por irrigação e menos geração de chuva. O acúmulo de gases de efeito estufa de origem antrópica vem ocasionando alterações nos ventos de alta altitude que distribuem a umidade do ar, reduzindo a chuva em alguns lugares e aumentando em outros. A lista poderia seguir, pois os exemplos são abundantes.

 

A recomendação? Primeiro, precisamos aprender a viver sem aumentar as taxas de poluição e degradação ambientais, e sem impedir que nossos semelhantes tenham o fundamental para uma vida digna. Precisamos também restaurar o que vem sendo destruído. É preciso reconhecer o imenso custo que incorreremos ao tolerar padrões insustentáveis para perceber que será mais razoável agir desde já. Precisamos preservar e restaurar as matas ciliares, precisamos de solos porosos e biodiversos, precisamos reduzir ao mínimo o uso de agrotóxicos, precisamos parar de tratar corpos d’água como depósito de lixo. É importante levarmos em conta que cada um de nós no fundo sabe no que poderia contribuir, como consumidor e como cidadão.

 

Precisamos, enfim, envidar certos esforços que gostaríamos de não precisar encarar. Temos que reconhecer, entretanto, que se continuarmos a violar as condições que tornariam saudável o nosso ambiente, não há porque achar que a natureza será mais tolerante. Precisamos com urgência tratar das causas do problema para evitar uma tragédia social, ambiental e econômica.

* Os autores são consultores em sustentabilidade estratégica na hapiterra.com

** Publicado originalmente no site www.thenaturalstep.org.br/pt-br/brazil e retirado do site Página 22.


https://envolverde.com.br/ambiente/agua-o-que-ha-em-comum-entre-sikri-ilha-de-pascoa-e-sao-paulo/

 

Blog principal

23/09/2014 03:45

Nosso novo blog foi lançado hoje. Fique atento e tentaremos mantê-lo informado. Você pode ler as novas postagens deste blog via RSS Feed.

Itens: 1 - 5 de 5